Técnica de criopreservação ovariana já possibilitou mais de 60 nascimentos

Os tratamentos oncoterápicos atuais são bastante eficazes na erradicação dos tumores malignos, entretanto podem destruir as células germinativas, tendo como consequência, nas mulheres, a menopausa prematura e a infertilidade.
Uma alternativa para preservar a fertilidade feminina é a associação da técnica de criopreservação e reimplante de tecido ovariano. Além disso, tem como vantagens a possibilidade de realização em qualquer período do ciclo menstrual e não requer estimulação hormonal, sendo indicada tanto nas pacientes com câncer hormônio sensível como naquelas pacientes pré-púberes, além de poder ser iniciada logo após o diagnóstico da neoplasia.
Os oócitos (óvulos) oriundos de folículos pré-antrais são mais resistentes ao processo de criopreservação do que oócitos maduros, assim o congelamento de fragmentos do tecido cortical ovariano garante a preservação de milhares de oócitos imaturos que, em sua grande maioria, seriam destruídos pelo tratamento oncoterápico.
Embora os primeiros transplantes de tecido ovariano já tenham sido relatados desde 1895 por Robert Tuttle Morris, onde se preconizava o rejuvenescimento mediante a manutenção dos níveis dos hormônios ovarianos após o climatério, foi apenas no final do século XX que o interesse pelo transplante ovariano aumentou. Esse fenômeno ocorreu graças aos conceitos emergentes de endocrinologia e imunologia, que possibilitaram uma investigação mais aprofundada com base em transplante experimental.
O transplante pode, ainda, ser identificado de acordo com o sítio de implantação do enxerto em ortotópico, no qual o tecido é transplantado para seu local de origem, ou heterotópico, onde o tecido é transplantado para uma região diferente de sua origem. O tecido ovariano após congelação/descongelação pode ser transplantado ortotópica ou heterotopicamente. O primeiro tipo permite uma possível gestação espontânea, já o transplante heterotópico exige a utilização de técnicas auxiliares como cultivo in vitro de folículos ovarianos seguido de maturação e fertilização in vitro de oócitos, possibilitando a produção e transferência embrionária.
Em 2004, Donnez e colegas publicaram um marco histórico na medicina reprodutiva humana, o qual trouxe esperança para milhares de mulheres que superam o câncer. Nesse estudo, uma paciente teve suas funções endócrinas e gametogênicas restabelecidas, além de ter sido relatada uma gestação após 11 meses de um autotransplante ortotópico dos fragmentos de ovário. Estudos subsequentes mostraram inúmeros casos de mulheres acometidas pelo câncer que, antes de se submeterem aos tratamentos quimio e/ ou radioterápicos, tiveram o córtex ovariano (parte do órgão) removido e criopreservado para fins de preservação e restauração de fertilidade.
O autotransplante ortotópico de fragmentos de córtex ovariano possibilitou que, após tratamento e cura do câncer, mulheres pudessem gestar e conceber filhos saudáveis sem a utilização de técnicas de reprodução assistida como a fertilização in vitro. Ernst et al. (2010) mostraram, ainda, que é possível manter as atividades endócrinas e gametogênicas por um prazo extenso. A paciente que esta equipe descreve foi submetida ao tratamento contra câncer e transplante semelhante aos casos já descritos anteriormente, sendo a primeira paciente a conceber dois filhos em períodos diferentes (primeiro nascimento em 2008 e o segundo em 2010) oriundos de um mesmo enxerto ovariano.
O autotransplante ortotópico de fragmentos de córtex ovariano pode também ser aplicado no tratamento de mulheres portadoras de anemia falcifome. Esta doença hereditária tem como opção curativa o transplante de medula óssea, a qual é precedida de quimioterapia, causando danos em óvulos (MEIROW et al., 1999). Roux et al. (2010) relatam casos em que pacientes foram tratadas da anemia falciforme apresentando perda prematura da função ovariana. Estas mulheres receberam transplante autólogo de tecido ovariano e, após alguns meses, apresentaram crescimento folicular e ovulação, o que permitiu nascimento posterior.
Meirow et al. (2005) descreveram o tratamento e a cura de linfoma, bem como o restabelecimento de fertilidade em uma mulher depois de receber autotransplante. Neste estudo, o tecido, após nove meses de implantação, apresentou crescimento espontâneo de um folículo ovariano de 15 mm. A partir dessa constatação, foi realizada estimulação ovariana com gonadotrofinas e, após 34 a 36 h da estimulação hormonal, um único oócito foi recuperado e um embrião de quatro células foi transferido, originando em gravidez e nascimento.
Recentemente, Donnez et al. (2013) analisaram dados para avaliar 60 transplantes ortotópicos divididos em três grupos de acordo com o local em que as pacientes foram atendidas (Bélgica, Dinamarca e Espanha). Todas as biópsias ovarianas foram congeladas com o processo lento de congelamento e, na maioria dos casos (73%), o córtex do ovário foi removido antes de qualquer quimioterapia. Foi relatado o restabelecimento da atividade ovariana em pelo menos 52 casos entre 56 (93%). Em uma das séries, foi observada a restauração da função ovariana em todos os casos, com exceção de três pacientes, em que não havia folículos presentes no reimplante de tecido ovariano, explicando a ausência de restauração da atividade do ovário. Em outro grupo, todas as 25 pacientes recuperaram a função ovariana, no entanto, em dois casos a atividade ovariana não excedeu oito meses. No terceiro grupo, 17 das 18 pacientes mostraram ter recuperado a função ovariana normalmente. Das 60 pacientes submetidas a transplante ortotópico, 11 pacientes engravidaram e 6 dessas mulheres já deram à luz a 12 bebês saudáveis.
Apesar de o sítio de implantação ortotópico fornecer condições ótimas à foliculogênese (desenvolvimento de óvulos), possivelmente devido às condições, como temperatura, fornecimento sanguíneo adequado e maior capacidade angiogênica, o autotransplante heterotópico pode ser uma fonte complementar de oócitos que, com a ajuda de técnicas de reprodução assistida como punção folicular e fertilização in vitro, possibilita a produção de embriões para serem transferidos, aumentando as chances de gravidez. As técnicas de reprodução assistida podem ser aplicadas mesmo subsequentemente ao transplante autólogo ortotópico. Nesse tipo de procedimento o enxerto pode ser estimulado com uma série de hormônios capazes de acelerar o crescimento folicular, reduzindo o tempo entre o transplante e a primeira gravidez subsequente.
Na última semana, foi realizado pela nossa equipe, o primeiro congelamento de tecido ovariano das regiões norte-nordeste, a nível privado, sob a liderança do Dr. João Marcos, um primeiro passo para a difusão desta técnica ainda experimental, mas que tem excelentes perspectivas futuras.
Baseado no artigo Cientifico de autoria própria publicado na Revista Saúde e Pesquisa, v. 6, n. 3, p. 525-532, set./dez. 2013 – ISSN 1983-1870.

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